Um tema de conferência, não em geral, mas um tema como este –
“Multiplicidades do eu ” -,
quando o conferencista se dispõe a experimentá-lo, começa por verificar
que ele exerce uma pressão sobre todas as suas faculdades. Todas as
faculdades começam a se agitar ao se deparar com o tema “Multiplicidades
do eu “. E nessa agitação, elas como que se reúnem e solicitam da alma
um auxílio: que a alma pressione o pensamento e o faça funcionar, num
exercício involuntário. Em mim essa pressão da alma sobre o pensamento
então emergiu; e nessa emergência, na confrontação com as
“Multiplicidades do eu “, a todo instante há a verificação de que seria
necessária a penetração nos mistérios e nas questões do tempo. Por causa
disso, meu pensamento – e não eu -, no seu exercício involuntário,
escolheu como vias de penetração na questão tocar, por um lado, um tema
que atravessa os séculos, misturado com o maravilhoso e com o
encantamento, que é o animismo; e, por outro, abordar o tema raro, só
pertencente à filosofia, que é o do nascimento do tempo.
Então, a minha conferência, pelo exercício involuntário do
pensamento, se bifurcou, se abriu em duas linhas. A primeira linha: as
dificuldades do animismo. A segunda linha: as dificuldades do nascimento
do tempo. Diante disso, eu me vi novamente forçado a transformar a
oralidade em escrita para poder ser mais claro na minha apresentação.
Mas, enquanto eu perseguia a exposição na escrita, cada vez mais eu
mergulhava nas dificuldades. E aí, resolvi estacionar a escrita e voltar
à oralidade…
É essa a experiência que nós vamos fazer juntos – meu exercício
involuntário do pensamento. Mergulhando na escrita e subitamente
descobrindo que seria necessário abandoná-la para fazer a exposição da
questão das multiplicidades do eu: esses movimentos me mostraram
nitidamente que eu estaria diante de um confronto entre o narcisismo
formal e o narcisismo material, entre a síntese passiva do tempo e a
síntese ativa do tempo. Só em falar nisso, sei que se começa a gerar uma
série de dificuldades. Então, boa viagem para nós todos.
Nesta conferência, irei dizer o que vou fazer, como nos créditos de
um filme, que o antecipam; mostro o que vou fazer. Mas logo que os
créditos terminam, o filme começa. Quanto a mim, logo que estiver
dizendo o que vou fazer, simultaneamente já o estarei fazendo. Esta
conferência é como um frontispício de um livro que não existe, como no
Livro dos Prefácios, de Jorge Luís Borges. Ou melhor, o frontispício de que lhes falei é todo um livro, é toda esta conferência.
Começar com o animismo; usando-o, ao animismo, como produto de uma
costureira celestial que faz do animismo o pesponto que une os limites
da eternidade e do tempo. Essa costureira celestial, em outra linguagem,
chama-se Plotino. Eu acredito que chamá-lo de costureira celestial,
usar a tecnologia do tecido para citá-lo, não ofenderá a meu mestre
Deleuze. Tudo é animado e vivo no animismo, ainda que, neste parágrafo,
reproduzindo tudo o que se diz na história da arte quando a referência é
o homem clássico, o animismo seja tomado como um modelo clássico de uma
projeção orgânica sobre toda a matéria como, por exemplo, a Alma do
Mundo no
Timeu. Estou dizendo que aqui é o animismo ainda
governado pelas projeções orgânicas que o homem faz sobre a natureza.
Este homem, o homem clássico, tornou-se a medida de todas as coisas,
assimilando o mundo à sua pequena humanidade. Ou seja, o homem clássico –
e aqui estou utilizando Wölflin na sua
História das Artes - é exatamente o modelo da projeção orgânica que fazemos sobre a natureza.
A explicação platônica para a origem da Alma do Mundo é a mescla
harmônica executada pelo Demiurgo; o que significa que Platão, quando
teve necessidade de explicar o nascimento do tempo, precisou introduzir
um deus.
É tudo diferente em Plotino. Quando digo ‘é tudo diferente em
Plotino’, estou projetando uma questão teórica de altíssima dificuldade,
porque o Plotino dado pelo Ocidente é um Plotino hegeliano, e Hegel fez
dele nada mais do que uma colagem entre Aristóteles e Platão. Na
verdade, o Plotino que vai aparecer aqui não é o de Hegel, mas o Plotino
de Plotino. Ele dará ao animismo uma extensão ilimitada. Toda força
ativa na natureza é uma alma ou se liga a uma alma, como as almas de
Proust que povoam as matérias, as coisas, os objetos, tornando presentes
neles as sensações, os afetos e os perceptos.
Não só o mundo tem uma alma, também os astros, também a Terra tem uma
alma, graças à qual ela dará às plantas a potência de engendrar. O
vitalismo imperante em Plotino teve seu eco na Renascença, em Giordano
Bruno e Nicolau de Cusa e também em Spinoza e Leibniz. O animismo emerge
com um potência extraordinária na obra de Plotino, ressoa em Giordano
Bruno, ressoa em Nicolau de Cusa e, mais ainda, ressoa em Leibniz e
ressoa em Spinoza (Spinoza e Leibniz, esses dois animistas!)
Mais à frente, na escola inglesa, esse desenvolvimento ecoa com a
vitalidade de toda uma corrente que espiritualiza o real. Trata-se por
exemplo de Samuel Butler que diz: ” Nosso Senhor disse para seus
discípulos considerarem os lírios dos campos que nem tecem nem
trabalham, mas cuja vestimenta é mais bela até mesmo que a vestimenta
mais gloriosa de Salomão.” Jamais poderemos fazer a concepção, a
germinação de uma rosa, como o faz uma semente de rosa que converte a
terra, o ar, o calor e a umidade em uma rosa florescente, em uma rosa no
esplendor da sua vitalidade cromática, aromática e táctil. De onde sai o
colorante que torna a rosa colorida? Sim, da terra, do fósforo, do
carbono. Sim. Mas como? Sem mãos, sem braços, sem instrumentos, a
semente da rosa contempla a matéria que a constitui.
Aqui, o animismo deixa de ser um envolvimento com as tolices da
maravilha para tornar-se explicitamente traços, forças na vizinhança de
um sistema físico ou de um organismo vivo, traçando uma linha abstrata,
independente, nômade, vetor livre, linha selvagem, sem outro desígnio
que não sua própria errância. Nela, por ela, em suas bifurcações,
clinâmens e variações, encontra-se Deleuze que afirma a proximidade do
animismo e da biologia, quando multiplicam-se as pequenas almas
imanentes aos órgãos e às funções – com a condição de se lhes retirar
qualquer papel ativo ou eficiente.
Assim, Deleuze seria como que um momento dessa tradição de pensamento
que teria emergência em Plotino e que segue errante e triunfalmente
pelos mais brilhantes pensadores da Humanidade. Eis quando Deleuze liga,
de uma maneira notável, o animismo à biologia molecular, mostrando que
todas as grandes conquistas que a biologia teria feito nesse século
seriam fundamentadas na força do animismo, o que leva os biólogos a
exercerem um pensamento totalmente original como se fosse um
prolongamento do
Erehwon, do trabalho de Samuel Butler; sua semente contemplativa encarnando-se na biologia molecular poderosa.
Alma, então, como a semente da rosa: somente focos de percepção e de
afecção moleculares, contemplações, microcontemplações. Os corpos todos,
quaisquer, nenhum em exceção, são povoados de pequenas almas, de
mônadas. As mônadas: a idéia monadológica soberba, a espiritualização do
real. E a verdade, então, será a força que não age mas que percebe e
experimenta.
Nesse momento, começa despontar para vocês a grande questão da obra de Deleuze, centrada em
Diferença e Repetição,
onde ele vai distinguir entre a síntese passiva e as sínteses ativas, e
começar a invadir e conquistar – e isso está em toda a sua obra – o
tempo. É exatamente isso que está acontecendo aqui, quando se começa a
falar da espiritualização do real, e o espaço torna-se penetrado por
estas forças de percepção e experimentação. É o fundo invisível que Van
Gogh buscava e colocava nos seus girassóis, no permanente frêmito
daquilo que nasce. É como se estivéssemos nessa linha abstrata em que,
de um lado, estão as forças invisíveis do tempo e, do outro, as suas
conseqüências, as suas criaturas, nós, as rosas, os girassóis de Van
Gogh.
O real é adicionado de intensidade – aquilo que é monadicamente
fragmentado, mônadas ou moléculas metafísicas – com as variações da
beleza e da individuação que emergem como pontos, como constelações
brilhantes, singularidades: a meta-estabilidade com seu ser esquartejado
como diferença de qualidade e de quantidade, o diferencial
pré-individual, como a membrana topológica e aiônica concebida pelo
futuro exterior e pelo passado interior, responsáveis pela gênese
ininterrupta do vivo. (Refiro-me aqui ao trabalho que Gilbert Simondon
fez sobre a topologia da membrana como uma das fontes do nascimento do
vivo.) Pela gênese ininterrupta da beleza, percepção, contemplação. No
coração da pop-art; nas muitas almas da pop-art, nas muitas almas de
Andy Warhol, nas imagens-contemplação das vozes de Lou Reed e de Arnaldo
Antunes.
Os corpos são povoados de uma infinidade de pequenas mônadas, de
observadores parciais. Assim ocorre com toda a biologia molecular, em
toda imunologia, com as enzimas alostéricas, com o demônio microscópico
com função cognitiva (recordo aqui o demônio de Maxwell). O organismo é
uma máquina que se constrói a si mesma; constitui-se de modo autônomo
graças aos observadores parciais.
Spinoza parte da vida de Deus e não vê na vida do homem ou dos outros
seres vivos senão um caso particular, melhor dito, uma expressão da
vida da Natura Naturans. Repetindo: Spinoza parte da vida de Deus e não
vê na vida do homem ou dos outros seres vivos, ou seja, das criaturas,
senão um caso particular, melhor dito, uma expressão da vida do próprio
Deus.
Tudo tem seu começo. Apareceu na errância da linha abstrata com Plotino, na
Enéada Terceira, Tratado VII, ”
Da Eternidade e do Tempo “; e Tratado VIII, ”
Da Natureza, da Contemplação do Uno “, que são antecipados no texto que exponho por aquilo que elas causaram, por aquilo que elas influenciaram: a arte bizantina.
O que eu afirmo agora é que reveríamos Plotino na arte bizantina. A
arte estaria além da própria beleza, a arte que se encaminha para o
sublime – Kant,
” Terceira Crítica “.
O olhar é tornado magnificente na divindade. Questão propriamente
bizantina: como pintar Deus? Pergunta angustiante: como pintar Deus em
si mesmo? Em que virtualidade, na terminologia de Bergson? Pintar Deus
em si mesmo e não por nós. Se ele deve ser adorado, ou melhor, se ele
deve ser visível para poder ser adorado, ele enfraquece. Enfraquecer
Deus? Que impiedade! Que ultraje! Mas eis a solução prodigiosa:
invertendo a relação olhante/ olhado, fazendo Deus impor-se não mais
como objeto a ser contemplado mas, de outro modo, como um sujeito que
nos contempla do fundo do olho. Como nos contempla por todo o espaço
celeste, não importando qual ângulo, não escaparíamos jamais a seus
olhos. O olhar de Deus nos contempla porque existimos, pois o olhar de
Deus é o tempo ou, mais belo ainda, a contemplação por ser contemplação é
imediatamente tempo.
Se eu estivesse dentro das minhas universidades, eu diria: nesse
instante começo a minha aula. O que eu acabei de dizer para vocês… a
tese que eu estou passando e que é difícil de ser exposta… é que a
emergência do tempo pressupõe a alma, e esta alma é uma alma
contemplativa. Mas se seguirmos a tradição desse pensamento, vamos
encontrar com uma clareza excepcional, em Bergson, essa alma
contemplativa tornando-se simultaneamente contemplativa e contraente. E é
exatamente nessa contração que o tempo emergiria. O olhar de Deus é uma
categoria do tempo, é o nascimento do tempo. Diz Deleuze: “Os
organismos se despertam com as palavras sublimes da
Terceira Enéada:
tudo é contemplação.” Aproximamo-nos das duas sínteses, passiva e
ativa; da síntese passiva e da imagem direta do tempo; do corpo sem
órgãos.
Quando a obra de Deleuze se expressa nessa questão, digamos, de
múltiplos eus, ele leva essa questão longe… Se o José Gil fosse fazer um
trabalho sobre o Fernando Pessoa, se ele fosse fazer um trabalho sobre
os heterônimos, ele conduziria os heterônimos para o que se chama
síntese passiva, onde se dariam as multiplicidades do eu. Deleuze
levaria para o que chama nas suas outras obras de imagem direta do
tempo, ou o que chama ao longo de toda sua obra de corpo sem órgãos.
Esses múltiplos eus, então, não pertencem ao sujeito conforme sujeito em
sua expressão orgânica. Esses múltiplos eus são intensidades da síntese
passiva, da imagem direta do tempo e do corpo sem órgãos.
Uma expressão do tipo “o bom senso ” não desempenha aqui nenhum papel
capital, nenhum papel na doação de sentido. O bom senso vem sempre em
segundo lugar, em sua distribuição sedentária. O que estou chamando de
bom senso é o uso que fazemos das nossas faculdades; segundo a
Crítica da Razão Pura,
esse uso das faculdades é governado pelo entendimento, e esse governo é
que se chama bom senso. Então o bom senso constrói um tipo de mundo,
esse mesmo mundo que é da flecha do tempo, que parte do presente para o
futuro. Mas, por baixo desse bom senso, as sínteses passivas, o corpo
sem órgãos ou, numa linguagem poética, o rugido de Dionísio, as
potências do inconsciente rugindo sob as formas da consciência.
A filosofia estóica – cito agora a filosofia estóica porque estou
seguindo Deleuze – não consiste em adotar a direção do bom senso.
Deleuze encontrou nas suas investigações – não de historiador de
filosofia porque ele não é um historiador de filosofia (o que não vou
explicar agora porque não nos interessa) – um tipo de pensamento, a
filosofia estóica, que não estaria submetido ao domínio do bom senso, ou
seja, ao domínio do entendimento como legislador das outras faculdades,
conforme o modelo de Platão e de Aristóteles. Ao encontrar os estóicos –
a filosofia estóica não consistindo em seguir a direção do bom senso, a
direção da flecha do tempo, mas como iniciativa apaixonada – descobre
que não podemos separar as duas direções do tempo.
A filosofia estóica descobre o acontecimento e com ele uma nova
teoria do signo. A distinção estóica entre signo natural e signo
artificial desencadeia, nessa minha exposição, o nascimento do tempo.
Como foi dito, uma das grandezas do estoicismo foi ter mostrado que todo
signo é signo de um presente do ponto de vista da síntese passiva, em
que passado e futuro – atenção – são apenas dimensões do próprio
presente. Trata-se do presente vivo, tal como o olho de Plotino: um dos
extremos do raio de luz que emana do Uno, quando o passado e o futuro
são dimensões do presente.
A retenção e a propensão. Quando a retenção não é uma reprodução
memorativa do passado, nem a propensão concebida como esperança, não
resta senão a implicação do passado e do futuro no presente, só
concebível nessa síntese misteriosa. Os tempos são três: presente das
coisas passadas, presente dos presentes e presente dos futuros. É a bela
fórmula de Santo Agostinho: há um presente do futuro, um presente do
presente e um presente do passado. Todos eles implicados e enrolados no
presente, simultâneos e inexplicáveis. A simultaneidade da síntese
passiva: as três pontas do presente.
Se nos propusermos a aceitar a pressão que a alma exerce sobre o
pensamento e deixarmos o pensamento penetrar, ele tem que destruir
necessariamente as forças do bom senso para começar a trabalhar no tempo
– porque o tempo é o meio dos paradoxos, e o bom senso detesta o
paradoxo. Quando o pensamento penetra no tempo, quando ele penetra no
ser do tempo, o que encontra é a simultaneidade do tempo, as três pontas
do presente. Essas três pontas do presente é que geraram,
possibilitaram, por exemplo,
Ano Passado em Marienbad. Toda a
obra de Deleuze se explica pela conquista do tempo, muito ao modo de
Bergson, com sua imagem coalescente, quando o passado e o presente devem
ser pensados como graus extremos coincidindo na duração.
Como foi dito mais atrás, não estamos no reino do bom senso ou do
signo artificial que remete ao passado e ao futuro como dimensões
distintas do presente. É a oposição de
Áion e de
Kronos.
Este último é o presente fugaz, que só existe na passagem do passado ao
futuro, duas dimensões, tais que vamos sempre do passado ao futuro.
Áion é quando o passado e o futuro são apenas dimensões do próprio
presente, é o momento da imaginação espontânea, o momento do nascimento
do tempo. Trata-se do eu passivo, e que se explica fundamentalmente por
não depender de sua receptividade, da recepção das partes eternas que se
repetem, mas são apenas sensações; a contemplação contraente da qual
emergem os organismos.
O que estou dizendo, então, seguindo Deleuze, é um plotinismo: é como
se a eternidade fosse uma espécie de Sol do qual emanariam raios. As
pontas que estão no Sol são eternidade; as pontas que tocam a Terra são
tempo. Então, nessa ponta da Terra é que vai aparecer o tempo, a síntese
passiva e, a partir daí, os organismos. É muito parecido com o que
Artaud disse: “A vida não é o organismo; a vida é a síntese passiva.” O
organismo é um domínio sobre a vida. A vida são as forças, os fluxos que
emergem, esses fluxos paradoxais do presente simultâneo. Daí é que
viria o organismo. E nós confundimos o modelo orgânico com o modelo da
vida…
É isso que nos dá, por exemplo, toda a obra, de Castañeda, conforme
aquela distinção famosa entre nagual e tonal. Toda a questão de
Castañeda é exatamente a dominação do homem orgânico, que não é capaz de
compreender nada que transborde as linhas da sua existência; tudo que
transborda as linhas da sua existência, ele joga para o campo das
maravilhas. Ele não é capaz de compreender que, além das linhas da sua
existência, estariam exatamente as forças do pensamento e as forças
genéticas da vida. Os eus passivos são sujeitos larvares, desde que se
estabeleça em alguma parte uma contemplação furtiva, desde que funcione
em alguma parte uma máquina de contemplação e de contração capaz de, na
passividade, impor uma diferença à repetição.
O mundo moderno tem seus grandes mestres dos eus larvares, entre
outros, Beckett e Lowry que, para além das sínteses ativas, atingem as
sínteses passivas que nos constituem.
Por mais que um pensador pretenda tornar o seu pensamento fácil para
que ele seja claramente entendido, isto jamais pode acontecer. O
pensamento não é difícil por acidente, ou seja, ele é difícil agora e se
tornará fácil quando eu cursar a minha universidade. Não! A essência do
pensamento é a dificuldade. A essência do pensamento é o difícil. E o
que eu chamo de pensamento são todas as ciências, todas as filosofias e
todas as artes. Ou seja, sempre que o pensamento está fazendo o seu
exercício, junto com ele emerge o difícil. Então, não há nenhum motivo
para o pensador se preocupar em tornar fácil a sua exposição. O que o
pensador tem que fazer quando expõe seu pensamento, ao invés de
conquistar pela clareza e pela distinção do que ele expõe, é fazer uma
prática de tal forma bela que ela produza rizomas, e que esse
pensamento, então, se expanda por esse processo, se expanda por rizomas.
É o meu procedimento nessa exposição.
Para concluir, acredito que seja melhor que prossiga o que estou
dizendo, explore as dificuldades do que estou dizendo, através de
perguntas que por acaso vocês venham a fazer, do que mergulhar na
intensidade do corpo sem órgãos, ou das sínteses passivas, ou das
imagens diretas do tempo.
Esta conferência foi um pouco como a produção do sujeito-artista de
Proust que, em sua experiência fantástica, em sua experiência
transcendental, rompe, põe fim ao sujeito psicológico e às suas
associações de idéias. De outro modo, Proust quebra o esquema
sensório-motor por dentro, faz aparecer os mundos possíveis pela
aventura do pensamento involuntário e descobre a essência do tempo
primordial da arte e da filosofia. Obrigado.
Pergunta: Eu quero perguntar ao filósofo Ulpiano se
ele pensa que o poder do inconsciente poderia reorganizar o processo
reflexivo alterado pela mídia eletrônica.
Claudio Ulpiano: Eu tenho tanta certeza disso que eu
não preciso nem efetuar o cogito. Quando eu disse o exercício
involuntário do pensamento, esta palavra pensamento tem como sinônimo o
inconsciente; o exercício involuntário do pensamento tem como sinônimo o
inconsciente. E o pensamento, da maneira que eu o penso, é exatamente
para quebrar a tradição do modelo ocidental construído pela lógica
platônica e aristotélica do mundo da representação. O pensamento, de
maneira nenhuma, tem como questão a reforma do mundo. A questão do
pensamento é permanentemente produzir mundos, produzir novos mundos. E
eu acredito que nesses outros mundos a mídia enfraquece.
Acerca dessa visão plotiniana: eu diria que há uma tendência de se
entender, de se compreender a questão numa formulação mística. Não
existem múltiplos eus; só existe o sol. As projeções, na verdade, não
passariam de aparências. Será essa a sua visão?
Para Plotino não há tempo sem a alma. A alma traz o tempo, a alma, o
eu larvar, a mônada do Leibniz. Ou seja, onde não houver um eu-larvar,
onde não houver uma pequena alma, não existiria o tempo. Por exemplo,
esta bombinha de asma. Se ela não estiver povoada por uma multiplicidade
de almas que contemplam, esta bombinha de asma estará na eternidade.
Então, o que eu acabei de falar é que o animismo com o seu
povoamento, com o povoamento que ele faz na matéria de uma
multiplicidade infinita de almas que são intensidades, torna esse
universo uma unidade extensiva mais uma multiplicidade intensiva. É
como, por exemplo, Bergson fala de multiplicidade de justaposição ou de
penetração. Então as múltiplas almas, sim, seriam necessárias.
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Este texto é a transcrição de uma
palestra dada por Claudio Ulpiano na Universidade Livre. A
Universidade Livre era uma associação de amigos que gostavam de
conversar entre si e resolveram conversar em público. Nos anos 80 e 90,
promoveram uma série de ciclos de conferências sobre temas diversos, que
iam desde Cosmos e Consciência até Amazônia. “Múltiplos Eus ” fez
parte do ciclo Pontos de Fuga, realizado na Escola de Artes Visuais do
Parque Laje, em 1995. O texto “A Travessia da Membrana: uma Imagem da Complexidade”, de Luís Alberto Oliveira, publicado neste site, em Colaboradores/Ciência, também faz parte deste ciclo.
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